04/10/2016

Nasceu o primeiro bebê com o ADN de três pessoas diferentes

O primeiro bebé com código genético de 3 pessoas diferentes nasceu há cinco meses no México. A técnica permite a casais com doenças genéticas terem filhos saudáveis. Estamos a fazer bebês-Lego?
Tem cinco meses, é um menino e é o primeiro bebê do mundo a nascer com o código genético de três pessoas diferentes. Abrahim Hassan foi concebido através de uma “técnica revolucionária” de reprodução medicamente assistida que, confirma-se agora, permite a um casal com mutações genéticas raras terem um filho completamente saudável. As práticas já foram aprovadas legalmente pelo Reino Unido, o único país até ao momento a permitir este tipo de técnica de reprodução. A notícia está a ser avançada pela New Scientist.
Os nomes dos pais ainda não são conhecidos. Sabe-se que são naturais da Jordânia e que foram acompanhados por uma equipa médica norte-americana no México. Acontece que a mãe desta criança tinha genes responsáveis pela síndrome de Leigh, uma doença que afeta o sistema nervoso central. Os 37 genes que expressam esta síndrome estão presentes nas mitocôndrias (e não nos núcleos das células, como na restante cadeia de ADN), que são responsáveis por produzir a energia dos organismos e que, no momento da procriação, são fornecidos pela mãe (e apenas pela mãe) ao novo bebé.
Ora, esta mãe não tinha síndrome de Leigh. Para que alguém sofra de uma determinada doença não basta que tenha a informação genética referente à doença: o organismo tem de “ler” esses genes. Mas embora a mãe fosse saudável, ela já tinha passado os genes dessa mutação para os dois primeiros filhos do casal, que morreram ainda pequenos com síndrome de Leigh (porque, neles sim, os genes da mutação tinham sido “lidos” pelo organismo). Cansados, procuraram a ajuda de John Zhang, médico do Centro de Fertilidade “New Hope” em Nova Iorque, Estados Unidos, para gerar um filho saudável. E ele arranjou uma solução.
A técnica chama-se “transferência pró-nuclear”, envolve a utilização dos óvulos de duas mulheres diferentes e o esperma de um homem. Os dois óvulos – da mãe e da dadora – são fertilizados pelos espermatozoides do pai. Antes ainda de se começarem a dividir em várias células no estágio inicial para formar um embrião, o núcleo dos dois ovos fertilizados foram retirados. O núcleo do óvulo fecundado materno foi então transferido para o óvulo fecundado da dadora – que tinha mitocôndrias com informação genética saudável. O bebé começou a desenvolver-se com o código genético do pai, da mãe e com a informação genética mitocondrial da dadora, que era saudável e não continha mutações.
Como o casal é muçulmano, John Zhang teve de mudar ligeiramente o procedimento. Usou uma “transferência nuclear de fuso”. Primeiro removeu os núcleos dos óvulos maternos e colocou-os nos óvulos da dadora (já sem os seus núcleos originais). Os óvulos resultantes ficaram então com o ADN nuclear da mãe e com o ADN mitocondrial da dadora, tendo a seguir sido fertilizados com o esperma do pai. Dos cinco embriões que se começaram a desenvolver, apenas um se comprovou completamente saudável. Foi esse o escolhido para ser implantado na barriga da mãe. Nove meses depois, a 6 de abril de 2016, nasceu Abrahim Hassan.
Nos Estados Unidos, o procedimento de John Zhang é proibido porque experiências semelhantes feitas nos anos 90 deram origem a bebés com doenças genéticas. Foi por isso que a família e a equipa médica rumaram para o México onde “não há regras”, explicou Zhang à New Scientist. Lá estudaram as questões éticas ligadas ao assunto e chegaram a uma conclusão: esta criança tinha mesmo de ser um menino. Porquê? Porque como só as mulheres passam as mitocôndrias para os filhos, o fato de o bebê ser um homem significa que nunca passará qualquer parte de código genético para os seus descendentes. Desta vez a “receita” resultou porque, ao invés de se limitarem a injetar mitocôndrias saudáveis nos óvulos da mãe, os médicos isolaram o código genético danificado.
Apenas 1% do ADN mitocondrial de Abrahim Hassan tem informação genética da síndrome de Leigh: para se expressar, a mutação tem de estar presente em 18% dos genes do indivíduo, o que torna altamente improvável que o bebé venha a desenvolver a doença que bloqueia a habilidade motora e leva, em última instância, à morte.
Um bebé feito de Legos?
Ainda este ano, a cientista francesa Emmanuelle Charpentier veio revelar uma descoberta capaz de mudar o mundo. Especialista em microbiologia, genética e bioquímica, a investigadora confirmou a existência de uma “receita científica” para editar o material genético humano (inserindo novas portas, removendo-as ou substituíndo-as) através de “tesouras” chamadas nucleases, modificadas em laboratório. A vantagem de uma técnica como esta é que pode evitar a transmissão de doenças de geração em geração. Mas também significa outra coisa: podemos escolher as características das nossas crianças, desde aspetos físicos (cor de olhos, tom do cabelo, cor da pele) até a aspetos mentais, nomeadamente a inteligência.
Este não vai ser o caso de Abrahim Hassan, explica Teresa Almeida Santos, presidente da Sociedade Portuguesa das Ciências da Reprodução, ao Observador. A molécula de ADN presente nas mitocôndrias herdadas pelo bebé é mais simples e mais pequena do que a cadeia genética presente no núcleo das células e serve para sintetizar algumas proteínas necessárias à respiração celular, responsável por transformar as ligações químicas em energia. Em suma, o ADN mitocondrial não tem qualquer informação sobre as características físicas e psicológicas do indivíduo: essas são dadas exclusivamente pela informação genética guardada nos núcleos do pai e da mãe, portanto não haverá qualquer característica da doadora das mitocôndrias em Abrahim Hassan: ela apenas doou a “central de energia” do organismo do bebé.
Procedimentos “não são complicados” e podem ocorrer em Portugal. No entanto, levantam sempre questões éticas. “Não é consensual porque não temos muita noção do que isto significa para a criança. Pode haver proteínas específicas do indivíduo que fiquem de alguma forma prejudicadas com este tipo de práticas”, conta-nos Teresa Almeida Santos. Mas estes foram receios que surgiram nos anos 90 e “já se passaram mais de vinte anos”. É preciso evoluir.

Fonte: Observador
Imagem: New Scientist