Início dos testes clínicos em São Paulo traz alento para vítimas do câncer e familiares, que têm na liberação da fosfoetanolamina uma chance de sobreviver com menos dor e mais dignidade.
A época não era das melhores para o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB). Com a imagem desgastada pelos efeitos da sua má gestão dos recursos hídricos e pelo desastrado projeto de fechar escolas para conter gastos, ele finalmente ouviu o clamor de doentes de câncer e de quem os têm na família. Pesou ainda a pressão dos deputados estaduais Roberto Massafera (PSDB) e Ricardo Madalena (PR), e do federal Lobbe Neto, também tucano, todos defensores da liberação da fosfoetanolamina sintética, a FOS.
Massafera é testemunha pública dos efeitos positivos das cápsulas que tomou. Em 23 de novembro, Alckmin recebeu no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo estadual paulista, o químico Gilberto Orivaldo Chierice, que se aposentou como professor do Instituto de Química de São Carlos, vinculado à Universidade de São Paulo (USP), e outros pesquisadores, que explicaram os princípios da substância. Segundo relatos de doentes, muitos com atestado médico, houve redução das dores e do avanço da doença, e melhora da qualidade de vida. Quatro dias depois, em reunião com o então ministro da Saúde, Marcelo Castro (PMDB), o tucano pediu autorização do seu uso compassivo e anunciou a realização de testes clínicos no estado.
No último 25 de julho, após oito meses, o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) passou a ministrar cápsulas da fosfoetanolamina produzida num laboratório em Cravinhos, município do interior, conforme formulação da equipe de Chierice. Nessa primeira fase, para atestar a segurança, estão incluídos dez pacientes. Se não houver reação tóxica, o estudo será ampliado para mais 200 pacientes com tumor de cabeça e pescoço, pulmão, mama, cólon e reto (intestino), colo uterino, próstata, melanoma, pâncreas, estômago e fígado. Se tudo der certo, o grupo crescerá progressivamente até alcançar mil pessoas.
"Não estamos apoiando charlatanismo nem empirismo. Há uma base científica já publicada. Fizemos a leitura de todos os estudos publicados em revistas científicas de prestígio antes de desenhar o projeto de pesquisa aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, o Conep", afirmou o imunologista David Uip, secretário estadual de Saúde de São Paulo, em entrevista coletiva, ao anunciar o início dos testes. "Não acreditamos em efeitos tóxicos. Observamos tudo o que foi feito, o laboratório que sintetizou, a dose utilizada em pelo menos 20 mil pacientes nesses anos todos. Nossa expectativa é de que os efeitos, que devem aparecer em quatro meses, sejam iguais aos observados nesses 20 mil pacientes. E enquanto tiverem melhora, por mais leve que seja, os pacientes serão mantidos no estudo."
Definição
Para o diretor-geral do Icesp, o oncologista Paulo Hoff, o estado tem a obrigação de esclarecer, de uma vez por todas, se o produto é mesmo eficaz na diminuição das dores, no controle do crescimento do tumor e revitalização dos pacientes. "Temos de levar em conta o interesse da população, o grande número de pessoas que fizeram uso e as tantas outras que entraram na Justiça para continuar o tratamento e dar uma resposta à sociedade." O governo estima em 18 mil as liminares contra a USP e o estado.
Com dividendos eleitorais e a chance de entrar para a história por ter desafiado a indústria farmacêutica por trás das temidas sessões de quimioterapia – um patamar acima do colega tucano José Serra, que se autointitula criador dos genéricos –, os testes têm, porém, significado muito mais nobre. É a renovação da esperança de um atalho para a liberação da FOS.
"Este é um momento precioso para a nossa luta. Precisamos dos testes clínicos porque seus resultados, muito aguardados, poderão influir na decisão dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Dos quatro ministros que votaram a favor da liminar que proibiu a distribuição, três não foram tão firmes, demonstrando postura quase a favor da FOS. Os testes podem ainda vir a ser usados em processo para registro como medicamento na Anvisa", comemora a analista de sistemas Bernardete Cioffi, de São Paulo, coordenadora do Instituto Viva Fosfo, que defende o direito de escolha pela vida, saúde e dignidade.
Entre as ações, a entidade orienta e cadastra pacientes oncológicos para medidas jurídicas e negociações coletivas para obtenção de benefícios. Com diagnóstico de metástase óssea devido ao câncer de mama, Bernardete estava tão debilitada que só saía da cama em cadeira de rodas. Sua vida de dores intensas mudou em junho do ano passado, quando soube da prisão de um colaborador de Chierice, o catarinense Carlos Kennedy Witthoeft, de Pomerode, por fabricar fosfoetanolamina em casa.
Novas leis
Sua filha, médica, leu os 2.700 trabalhos publicados em sites científicos sobre a substância até então desconhecida pela família. "Se não curar, mal não vai fazer. Se houver algum efeito colateral, deixa de tomar", recorda Bernardete, sobre a recomendação da filha. Dias depois, entrava com pedido de liminar para obter cápsulas em São Carlos. "Tive de parar o uso várias vezes por causa de reveses na Justiça. Se eu não tivesse parado, poderia até estar curada", acredita ela, ressaltando estar satisfeita pelo câncer deixar de avançar e por ter restaurado sua condição física.
Como uma porta-voz dos usuários da FOS, Bernardete hoje percorre o país para audiências públicas e palestras. E promete continuar levando fatos novos aos ministros do Supremo, que em abril deu vitória apertada, por 6 a 4, à Associação Médica Brasileira (AMB), na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.501, contra a Lei 13.269/2016, sancionada por Dilma Rousseff em 13 de abril, que autoriza a distribuição da FOS para pacientes diagnosticados com tumor maligno.
Comemorada por pacientes e familiares de todas as classes sociais e até em outros países, a lei foi duramente criticada na mídia conservadora, costumeiramente aberta a entidades médicas, como a AMB – a mesma que capitaneou hostilidades contra os profissionais cubanos do programa Mais Médicos. Colunista do jornal Folha de S.Pauloe defensor dos transgênicos, o médico Drauzio Varella chamou de "ignorância populista" a decisão do Congresso de aprovar a liberação da substância "sem que nenhum estudo tenha sido submetido à apreciação da Anvisa".
Para a AMB, faltam testes em seres humanos que confirmem a eficácia e a segurança. "Não me sinto representada nem defendida pela entidade, que falta com a verdade ao dizer que a substância não foi avaliada. E não estou sendo atacada. Pelo contrário. Como paciente, estou tendo ampliado meu direito a alternativas de tratamento", rebate Bernardete.
A Defensoria Pública da União no Rio de Janeiro ingressou como amicus curiae ("amigo da corte", em latim, parte estranha à causa que oferece informações) para subsidiar os ministros. "Entre os nossos argumentos, o desinteresse da entidade médica em entrar com medida semelhante contra o cigarro e suas mais de 4.500 substâncias tóxicas que já mataram milhões de pessoas, e os agrotóxicos liberados pela Anvisa que são proibidos em muitos países", explica o defensor Daniel Macedo, que em 2015 começou a acompanhar o caso em busca de informações – que, segundo ele, não estavam sendo repassadas pela imprensa.
Testes
"Requisitei informações aos pesquisadores, à USP e à juíza Gabriela Müller Carioba Attanasio, da Vara de Fazenda Pública em São Carlos, que concedeu mais de 900 liminares favoráveis às pessoas que queriam obter a fosfoetanolamina. Esse fato é que me deixou mais estarrecido e me deu mais segurança. Com isso, fui pesquisar o currículo dos pesquisadores, analisar as pesquisas científicas com suporte de outros pesquisadores. É como a construção de um prédio, no qual fiz a fundação e construí os andares", diz.
O defensor trabalha agora numa ação civil pública contra irregularidades nas pesquisas conduzidas no âmbito de uma força-tarefa iniciada em outubro do ano passado, pelo então Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, para realização de testes com objetivo de acelerar o processo de registro na Anvisa. Entre as falhas, o uso de cápsulas cuja formulação é diferente da de Chierice. "Está sendo estudada uma fosfoetanolamina sintética desenvolvida nos laboratórios da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) a partir do relatório de patente depositada pelos pesquisadores no Inpi (Instituto Nacional de Propriedade Intelectual). Só que por motivos de proteção da fórmula original, não são divulgados todos os detalhes", aponta Macedo.
"Quando você faz isso, significa má-fé. Quando você suborna dados, significa má-fé. E essa má-fé nós não podemos admitir como pessoa, nem como pesquisador", disse o químico Chierice durante reunião das Comissões de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática, Assuntos Sociais, Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, em 5 de abril. E avisou: "Para alegria de todos e para não preocupar muito os nossos centros de pesquisa, já começamos a fazer estudos clínicos talvez no México, Coreia e talvez no Canadá. Vai ser feito paralelamente porque não dá para confiar no que vai ser feito aqui no país".
A Defensoria questiona ainda o desvirtuamento do uso dos recursos federais. Dos R$ 10 milhões destinados à pesquisa em andamento em laboratórios ligados às universidades federais do Rio de Janeiro, Ceará e Santa Catarina, R$ 2 milhões já foram gastos. "Vamos pedir a desconstituição dessa equipe, a desconsideração dos resultados e trazer a ciência para o processo judicial. Mas da forma como está sendo conduzido, isso vai determinar resultados falso-positivos quando entrar na fase clínica. E nós não podemos admitir uma lesão ao erário", afirma Macedo.
Falhas como essas, segundo Bernardete, não devem se repetir na pesquisa paulista, que utiliza formulação original e que tem acompanhamento da equipe de São Carlos. No entanto, ela teme "sabotagem" em nível de administração do medicamento aos pacientes. "Vamos continuar vigilantes. Em dois meses, deveremos ter a resposta quanto à segurança", afirma, otimista.
Alternativa em meio a polêmicas
A “pílula do câncer” não cura a doença. É um coadjuvante que potencializa – e não substitui – a quimioterapia. Ou seja, ajuda a matar as células tumorais com doses menores desses fármacos, efeitos colaterais menos severos e melhora da qualidade de vida do paciente oncológico.
A fosfoetanolamina é conhecida desde o início do século passado. Encontrada primeiro na membrana celular de tumores, chegou a ser considerada causadora da doença. Por isso, um orientando de Gilberto Chierice queria inibir a ação dessa substância. Na pesquisa, observou a presença no leite materno. Por que um alimento produzido pelo próprio organismo concentraria um agente cancerígeno?
Como câncer é a multiplicação de células defeituosas e nos primeiros meses de vida é quando as células se multiplicam mais rapidamente, a substância poderia ter o papel de debelar e não de causar tumores. Uma proteção natural no leite, desconfiaram os pesquisadores. A fosfoetanolamina biológica, então isolada, mostrou ação seletiva contra as células tumorais em laboratório. Daí para estabelecerem doses foi um pulo, e as pesquisas começaram no Hospital Amaral Carvalho, em Jaú (SP), que já testava próteses fabricadas com óleo de mamona desenvolvidas por Chierice.
Como a obtenção da substância biológica era custosa é difícil, os bons resultados apontaram para a necessidade de a sintetizarem, assim como foi sintetizada a insulina, por exemplo. “Durante nove meses, 24 horas por dia, Chierice e o químico Otaviano Mendonça Ribeiro Filho se revezavam no laboratório do Instituto de Química de São Carlos. Foram milhares de testes até chegar a uma síntese com a mesma biodisponibilidade, sem toxicidade”, conta Bernardete Cioffi, coordenadora do Instituto Viva Fosfo.
Segundo ela, isso foi em 1995, quando surgiram oncologistas interessados e propostas milionárias. “Para proteger a fórmula, e não para lucrar, os pesquisadores patentearam e começaram a procurar órgãos ligados ao Ministério da Saúde, cujas reuniões foram documentadas. A Anvisa ainda não existia. Quando a pesquisa foi suspensa em Jaú, os pacientes que se beneficiavam iam buscar mais cápsulas.
Os médicos, vendo melhora na saúde, os encaminhavam para procurar o “professor” no laboratório de São Carlos. “Não tem como impedir que se espalhe a fama de algo que mostra resultado bom”, conta Bernardete. No entanto, o hospital não renovou o convênio de pesquisa e os registros e prontuários dessa pesquisa nunca foram encontrados. “Todo convênio de pesquisa tem a chancela do Ministério da Saúde, e o de Jaú chegou a ser publicado no Diário Oficial da União”, diz o defensor público da União no Rio de Janeiro Daniel Macedo. “No entanto, documentos e prontuários desapareceram, o hospital desconversa, nega ter havido testes ali, e o ministério não foi atrás.”
A aposentadoria de Chierice, em 2013, coincidiu com uma portaria da USP, meses depois, proibindo a distribuição de qualquer substância sem registro na Anvisa. Em junho de 2015, quando Carlos Kennedy Witthoeft foi preso em Santa Catarina, havia uma avalanche de liminares no Fórum de São Carlos. O caso então explodiu na imprensa e nas redes sociais – e foi parar no Congresso Nacional.
Fonte: RBA
Imagem: Cecília Bastos Ribeiro - USP