14/04/2016

Pesquisa investiga o funcionamento neurobiológico do esquecimento


O que comemos no almoço há dois dias? Que par de sapatos usamos na semana passada? Esses são fatos corriqueiros que vivenciamos, mas que vamos esquecendo com o passar dos dias. A investigação dos mecanismos que atuam na formação de memórias e no esquecimento das mesmas foi tema de estudo publicado por um grupo de pesquisadores da UFRGS na Scientific Reports, revista do grupo Nature. O trabalho faz parte da pesquisa de doutorado em Neurociências de Ricardo Sachser. Orientado pelo professor Lucas de Oliveira, seu objetivo é entender como funciona o processo de esquecimento.
Os testes foram realizados com ratos de laboratório, em um experimento no qual os animais eram incentivados a memorizar a posição de obstáculos dentro de uma grande caixa em que eram colocados diariamente. “Usamos um protocolo conforme o qual os ratos formavam uma memória que, ao redor do terceiro dia, esqueciam. Fazendo uma analogia, seria como você se lembrar do que vestiu há três dias”, explica Lucas.

Papel do cálcio na estabilização da memória e no seu esquecimento
Conforme os estudos, o cálcio (Ca²+) é o grande responsável pela formação tanto da memória quanto do esquecimento. “Ele é um sinalizador que ativa uma série de cascatas. Dependendo da sua localização e concentração, pode estar envolvido em formar memórias ou em esquecê-las”, comenta Lucas. Todo esse processo de memorização acontece nos dendritos dos neurônios, na região do cérebro denominada hipocampo.
Segundo Ricardo, o cálcio coordena, num primeiro momento, o processo de estabilização da membrana do neurônio, mas também atua nos processos de desestabilização. “No momento de gravar uma informação, é necessária a entrada de cálcio”, relata. Porém, a grande quantidade desse íon leva ao processo do esquecimento, devido à desestabilização que ele provoca. A substância entra e sai da célula pelos receptores de cálcio, que são meios fixos na membrana, ou pelas enzimas ativas, que não são fixas, como a calcineurina. “Não importa de onde o cálcio venha. Após a estabilidade da memória, se ele entra, ele desestabiliza”, comenta Ricardo.
Além da análise comportamental, os pesquisadores investigaram o mecanismo implicado diretamente no nível celular, por meio do estudo das atividades elétricas dos neurônios. “Na eletrofisiologia, os ratos recebem anestesia, e é possível analisar se uma população de neurônios vai disparar ou não”, comenta Lucas. Uma droga que bloqueia a entrada do cálcio foi injetada nos animais após a indução de reposta em determinado traço da memória – em um processo chamado de potenciação de longa duração. “A gente esperou em torno de 30 minutos o traço da memória se estabilizar e então injetamos a droga, e essa memória não caiu. Ou seja, o traço continuou potencializado”, explica Ricardo.  “Usamos as drogas como ferramentas farmacológicas para entender o mecanismo de ação, e não como uma proposta terapêutica. A ideia é que o rato deve aprender algo e depois ele tem de esquecer. Usamos tarefas que chamamos não aversivas, pois não são lembradas por muito tempo naturalmente”, complementa Lucas.

Estresse pós-traumático e possíveis aplicações
Os principais achados da pesquisa foram os mecanismos neurobiológicos responsáveis pelo esquecimento, a caracterização dos receptores e a importância do cálcio nesse processo. “Uma vez que você entende o mecanismo implicado nessa estabilização/desestabilização, você pode evitar que o declínio ocorra. E no caso das pessoas que sofreram estresse pós-traumático? Já pensou acelerar o esquecimento disso? Essa é uma das próximas questões que vamos tentar descobrir”, salienta Ricardo.
Em pacientes humanos, o tratamento de traumas é feito em sessões de terapia. “Só é possível mexer na estrutura da memória mediante a sua evocação. Numa sessão clínica, você evoca o maior número de detalhes daquela memória e, quando ela está instável de novo, é o momento de entrar com intervenção farmacológica pra bloquear esse circuito”, explica.  “Essa é uma questão importante: a gente quer acelerar o esquecimento daquela memória específica, e não das outras”, complementa Lucas.
O trabalho também conta com a parceria de grupo de pesquisa do Departamento de Biofísica da University of Edinburgh, na Escócia, do Laboratório de Neurobiologia da Memória, do Instituto de Biociências e do Departamento de Biofísica da UFRGS.

Artigo científico
Fonte: Carolina Passos/UFRGS Ciência
Imagem: Freepik