05/03/2016

Alunos Tukano escrevem dissertação de mestrado da Ufam na língua da etnia



Os indígenas Dagoberto Azevedo, 37 anos, e Gabriel Maia, 45 anos, falam língua Tukano, originária dos territórios margeados pelos rios Uaupés, Tiquié e Papuri, afluentes do Alto Rio Negro, município de São Gabriel da Cachoeira, no noroeste do Estado do Amazonas, na fronteira com a Colômbia. É nesta língua, e não no português, que eles vão escrever suas dissertações de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), uma iniciativa considerada um marco no sistema educacional do ensino superior do país.

“Estamos fazendo algo novo. Não queremos ser apenas informantes (de outros pesquisadores). Também queremos escrever, mas na nossa língua”, diz Dagoberto Azevedo à Amazônia Real.

A facilidade de se expressar em sua própria língua nativa e a necessidade de corrigir distorções de conceitos e palavras são algumas das razões que levaram os dois estudantes de mestrado a optarem em escrever suas dissertações em Tukano.

“Muitas palavras possuem conceitos distorcidos em pesquisas já feitas. Foram interpretadas no equívoco”, diz Gabriel Maia.

Ele cita como exemplo Miriãpora, uma palavra Tukano que se refere aos instrumentos musicais sagrados usados em festas tradicionais, como o Dabucuri, e em rituais de iniciação. No imaginário ocidental, a mesma palavra foi chamada de “jurupari”, que não existe na língua Tukano. Ela é originária do Nheengatu, uma língua geral criada por missionários a partir de termos tupi-guarani. Na tradução elaborada pelos missionários, “jurupari” seria o mesmo que “demônio”, o ente bíblico maligno. “Ou seja, essa palavra e outras estão sendo explicadas melhor no texto da minha dissertação”, diz Maia.

Dagoberto Azevedo (cujo nome em Tukano é Suegu, pessoa que canta e dança nas festas e rituais) nasceu na comunidade Pirarara, no rio Tiquié. Fez todo seu ensino fundamental e médio na comunidade. Graduou-se em em Filosofia.

Nascido na comunidade Pato Cachoeira, no rio Papuri, Distrito de Iauaretê, Gabriel Maia tem o nome indígena de Akʉto Ye’pa-mahsʉ (sem uma tradução literal). Ele estudou em escolas das comunidades indígenas do Alto Rio Negro. Foi soldado do Exército e seminarista salesiano. Também estudou Pedagogia Intercultural no ensino superior. Ingressou no mestrado em 2014.

No último dia 16 de fevereiro, a pró-reitoria de pós-graduação da Ufam deu parecer favorável ao ofício de Dagoberto Azevedo e Gabriel Maia para que eles possam escrever suas dissertações integralmente na língua Tukano. Seus respectivos orientadores, Carlos Machado Dias e Gilton Mendes, já haviam concordado. No último dia 23, o colegiado do PPGAS aprovou o pedido.

“A língua Tukano é mais livre, mais libertária e mais coerente para eles poderem expressar suas ideias. Eles deixam uma língua estrangeira e passam a escrever na sua língua”, afirmou Gilton Mendes, professor de mestrado em Antropologia Social e orientador de Maia, em entrevista à Amazônia Real.

O ofício foi encaminhado ao pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação, Gilson Monteiro, no dia 09 de dezembro de 2015. Entre as considerações, Dagoberto Azevedo e Gabriel Maia afirmam que possuem como primeira língua o Tukano e se expressam melhor, por meio dela, ideias e argumentos, tanto na forma falada como escrita. Eles dizem no ofício:

“Vimos solicitar dessa pró-reitoria a garantia dos nossos direitos, como membros de uma sociedade indígena, de elaborar nossas dissertações acadêmicas, para conclusão do Mestrado, na língua materna – e, se for de interesse do Programa ou da Universidade, que seja feita a tradução dessa produção acadêmica para a língua Portuguesa.  Uma vez que não somos apenas indivíduos, mas pessoas coletivas que ocupam um lugar na estrutura social do sistema de descendência Tukano, tal iniciativa garante também a nossos grupos étnicos o direito de ler essa produção sobre nosso conhecimento em sua própria língua”.

A aprovação do uso da língua nativa na Pós-Graduação em Antropologia Social da Ufam ocorre quase dois meses depois que a presidente Dilma Rousseff vetou o Projeto de Lei de autoria do senador Cristovam Buarque (então no PDT-DF, agora no PPS) que permitiria que línguas indígenas fossem usadas nos ensinos médio, profissionalizante e superior, e não apenas no ensino fundamental. O projeto havia sido aprovado no Senado no final de 2015, mas a presidente vetou no dia 29 de dezembro.

Antes do parecer favorável, os dois já vinham escrevendo o esboço do que virá a ser suas futuras dissertações em português. Com a aprovação no Colegiado do PPGAS, o português será uma língua coadjuvante.

Dagoberto Azevedo e Gabriel Maia vão prestar a qualificação (etapa que antecede a defesa) em março. Os textos serão apresentados na língua Tukano  em português.

Por que escrever em sua própria língua? Para Dagoberto e Gabriel, os verdadeiros detentores do conhecimento indígena (conhecidos como kumuã), além de outros parentes, precisam e têm direito de saber o que eles vão pesquisar e escrever. Eles também querem que as dissertações sejam adotadas nas escolas indígenas.

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Foto: Alberto César Araújo/AmReal
Fonte: Amazônia Real