No gelo da Antártica, cientistas brasileiros encontraram sinais claros do melhor e do pior da “era dos homens”, o Antropoceno. O gelo antártico, que nunca derrete, funciona como uma cápsula do tempo. Guarda bolhas do ar que circulou há séculos. E foi ao examinar o que se chama de “testemunho de gelo” que eles encontraram sinais do surgimento, do auge e do ocaso da poluição por arsênio vinda de minas do Chile, a cerca de 4 mil quilômetros de distância. Marcas do homem registradas na história do planeta.
Realizada pelo grupo de Jefferson Simões Cardia, pioneiro da pesquisa em glaciologia no Brasil, o estudo foi publicado na revista “Atmospheric Environment”. Traz duas descobertas importantes. A primeira é que a poluição por elementos altamente tóxicos, como o arsênio, pode viajar na atmosfera por milhares de quilômetros. Levada pelas correntes atmosféricas, a pluma de arsênio foi capaz de ultrapassar algumas das maiores montanhas da Terra, na Cordilheira dos Andes, e atravessar os mares.
— A poluição nunca é um problema local. Ela é global. Ao circular pela atmosfera, atinge o globo. Não há lugares a salvo — frisa Simões.
Leis ambientais surtiram efeito
Porém, o estudo teve uma segunda descoberta significativa. O testemunho de gelo funcionou como uma espécie de medidor de poluição. E mostrou que leis ambientais sobre a mineração, impostas pelo Chile em meados dos anos 90, surtiram efeito. A poluição praticamente cessou.
—Foi uma ótima notícia. Nosso estudo demonstrou que, quando cumpridas, leis ambientais têm alto impacto positivo, e é possível provar isso de forma contundente — afirma Simões, que é diretor científico do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O Centro Polar e Climático é líder na América Latina em pesquisas de testemunhos de gelo. Quanto mais se escava, mais longe se viaja no tempo. A meta inicial do estudo era investigar a presença de poluentes na Antártica, continente mais puro da Terra, diz a principal autora da pesquisa, Franciele Schwanck.
— O gelo guarda a química da atmosfera. Cada camada representa determinado período do tempo — diz Franciele.
O período estudado começou em 1883 e foi até 2008. As pesquisas continuam, para analisar dados mais recentes,
— Num primeiro momento, analisávamos 24 poluentes. Mas as concentrações de arsênio nos chamaram a atenção e resolvemos investigar a mais fundo — explica Franciele.
A principal fonte do arsênio na atmosfera é a queima da mineração do cobre. O arsênio ocorre na natureza muitas vezes associado ao cobre. Para extrair este último, as mineradoras precisam queimar o minério. Vapores do altamente tóxico arsênio são liberados na atmosfera.
— O Chile é o maior minerador de cobre do mundo. Através de modelagens atmosféricas, pudemos verificar o caminho da poluição até o interior da Antártica — acrescenta a pesquisadora.
Os cientistas viram que até 1900, quando a mineração era quase inexistente, os níveis de arsênio eram insignificantes. Porém, aumentaram progressivamente. E chegaram a um pico entre os anos 50 e 90 do século XX. Mas a poluição ficou tão séria no Chile que o governo impôs leis severas para evitar a liberação do arsênio, em 1995.
E o gelo refletiu o resultado. Na segunda metade dos anos 90, os níveis de arsênio começaram a decrescer. Para praticamente voltar aos valores de 1900 nos anos 2000.
— Foi um resultado impressionante e realmente um impacto muito positivo — destaca Franciele.
Conquista para a ciência brasileira
Porém, no Chile, observa ela, as consequências foram sérias por muitos anos. Ao entrar na atmosfera, o arsênio era devolvido na chuva sobre o Chile. Principalmente nas áreas próximas às minas. Causava problemas de saúde, já que esse metal afeta o sistema nervoso, com consequências graves.
O estudo tem outro desdobramento. Segundo Jefferson Simões, a pesquisa, feita no interior da Antártica, também é uma demonstração do alto nível da ciência realizada por brasileiros no continente gelado. Apesar de destruição, em 2012, por um incêndio, da Estação de Pesquisa Comandante Ferraz, na Península Antártica, as pesquisas não pararam.
Os estudos do grupo da UFRGS são realizados a mais de dois mil quilômetros dali, no interior da Antártica, com o módulo Criosfera 1, também parte do Programa Antártico Brasileiro. O módulo envia informações em tempo real para o Brasil. E é mantido por equipes de pesquisadores que se revezam. O local fica a dois mil metros de altitude, em permanentes condições de frio intenso.
— Estamos felizes de ter realizado um estudo de alto impacto e complexidade. Estratégico para a consolidação da presença do Brasil na Antártica. Esperamos agora poder dar prosseguimento à instalação do Criosfera 2, no verão de 2016/17 — afirma Simões.
Publicado em O GLOBO
Img: Freepik
Img: Freepik